Um dia perguntei às minhas alunas de voz qual seria a questão do momento. Thais me disse a respeito da disciplina. Da dificuldade de praticar todo dia algo que tanto se almeja, no caso, o canto. Lembrei-me então da expressão “disciplina amorosa”, apresentada a mim pela querida Bruna, professora de Yoga e terapeuta Ayurveda. Algo como buscar um eixo, uma harmonia, uma rotina, como a própria natureza nos ensina, com os seus ciclos diários. É verdade que uma prática sistemática constante leva seguramente ao aperfeiçoamento de qualquer arte. Mas acredito também no espaço vazio, na abertura para a contemplação dos fenômenos. Para mim aprender a cantar é sim realizar diversos exercícios para a musculatura, a imaginação, a expressão. É também estar aberta à paisagem sonora do mato ou da cidade, ver vídeos de grandes cantores para observar as mãos, os pés, que roupa usam, como piscam. É preciso cantar bêbada, rs. Junto com a cachaça vêm uns bons goles de coragem! Já diria Gilberto Gil, que a música é a verdadeira “afinação da interioridade”. Então algo deve se remexer dentro, pra que algo saia pra fora de um jeito único, um jeito singular. Uma dança própria do som no ar. Então proponho uma disciplina poética! Algo como refazer percursos, realizar exercícios, mas também inventar um caminho próprio, um jeito de corpo poroso de vida. Aprender a ler, beber, chupar o que te afeta. Uma vez tive a oportunidade de preparar cenicamente uma incrível cantora lírica. Ao seu som, eu sugeri algumas imagens, algumas histórias, certas qualidades de presença para potencializar aquele acontecimento todo. Numa das aulas ela me contou sobre uma ária dificilíssima sobre a qual se debruçou um bom tempo. Sua disciplina e persistência eram invejáveis. Mas não rolava! Não tinha alma! Eis que depois de 2 ou 3 anos, após morar em outro continente, a cantora retoma o estudo da ária e… Bingo! A arte aconteceu. Talvez a música precisasse amadurecer para desaguar pela boca da artista. Ou talvez a cantora precisasse amadurecer para ser digna daquela aventura. É coisa da vida! Andar perto do barro do chão, exercitando o olhar sensível e aguçado, feito bicho que se eriça ou criança que não larga o brinquedo. Acredito que o que gente faz não seja se armar para a melhor performance, mas sim criar oportunidade para a nossa presença se afinar com os tons do mundo.
Foto: Mirela Persichini | Edição: Luísa Bahia