Esse quadro é o último objeto de Dona Alzira que resta dentro da casa verde, plantada no imenso terreno de mesma cor. Nele está pintada minha vizinha, pequenina, como promessa de anjo. O curioso é que ela velha, era idêntica. Feito coisa que inverte o tempo. Me impressionei com a imagem, como me impressiono com a morte. Dona Alzira faleceu silenciosamente, um silêncio tão silêncio que só fomos descobrir 3 dias depois. Da minha janela avistei seu corpo, dentro de um lençol, carregado por dois homens. Parecia uma cena de Morte e Vida Severina. A morte é trabalho que delegamos aos religiosos, filósofos, coveiros, cuidadores de cadáver… Mas ela ensina pra gente e a gente finge não ver: numa rasteira nos lembra da vida, essa outra tinhosa de galope implacável. Não sei bem sobre a encomendação da alma, mas acredito no encantamento do mundo. Nessa foto sou eu olhando pra foto de Dona Alzira e cantando uma cantiga de Nossa Senhora, que não sei se acredito e nem ela, mas pelo menos era bonita. Chorei. Clamei para que a minha vizinha virasse borboleta e continuasse pertinho das suas rosas. Hoje a casa está bem cuidada pela família daqui do segundo andar. O Gil fez uma música bonita falando do “morrer”, ele sim dá medo e não a morte em si. Fiquei pensando no quanto nos agarramos na morte derradeira e não avistamos as pequeninas, diárias, sinais de perigo ou de pura transformação. Sobre Deus, não creio ao certo, só sinto. Essa história é um pequeno gesto para Dona Alzira, seu jardim sagrado, o olhar sensível de Isadora e minha vontade de ser profeta, alimentada pela poesia que invade a minha janela.
📷 Isadora Fonseca