Alma🌱

Esse quadro é o último objeto de Dona Alzira que resta dentro da casa verde, plantada no imenso terreno de mesma cor. Nele está pintada minha vizinha, pequenina, como promessa de anjo. O curioso é que ela velha, era idêntica. Feito coisa que inverte o tempo. Me impressionei com a imagem, como me impressiono com a morte. Dona Alzira faleceu silenciosamente, um silêncio tão silêncio que só fomos descobrir 3 dias depois. Da minha janela avistei seu corpo, dentro de um lençol, carregado por dois homens. Parecia uma cena de Morte e Vida Severina. A morte é trabalho que delegamos aos religiosos, filósofos, coveiros, cuidadores de cadáver… Mas ela ensina pra gente e a gente finge não ver: numa rasteira nos lembra da vida, essa outra tinhosa de galope implacável. Não sei bem sobre a encomendação da alma, mas acredito no encantamento do mundo. Nessa foto sou eu olhando pra foto de Dona Alzira e cantando uma cantiga de Nossa Senhora, que não sei se acredito e nem ela, mas pelo menos era bonita. Chorei. Clamei para que a minha vizinha virasse borboleta e continuasse pertinho das suas rosas. Hoje a casa está bem cuidada pela família daqui do segundo andar. O Gil fez uma música bonita falando do “morrer”, ele sim dá medo e não a morte em si. Fiquei pensando no quanto nos agarramos na morte derradeira e não avistamos as pequeninas, diárias, sinais de perigo ou de pura transformação. Sobre Deus, não creio ao certo, só sinto. Essa história é um pequeno gesto para Dona Alzira, seu jardim sagrado, o olhar sensível de Isadora e minha vontade de ser profeta, alimentada pela poesia que invade a minha janela.

📷 Isadora Fonseca​

Oásis 🍃

A casa de Dona Alzira é essa imensa moita, um manancial de jeitos verdes. Dizem que a construção aqui no Cruzeiro é da década de 20. Tem bananeira, roseira, dama da noite, espada de São Jorge, costela de Adão e muito feitiço. Eu sempre admirei a pintura, esse desbunde de vida que aparece na minha janela. Mas quando lá pisei, parecia um portal. De beleza, calma e abundância. O tempo se esticou. Como é que a vida muda tanto de um muro pro outro? Eu queria ser neta de Dona Alzira, pra poder pisar na terra todo dia, olhar pra cima e ver o teto estrelado do mundo, ouvir muitos silêncios dentro do café da tarde. Teve uma época que uma moça morava com ela. Todo dia a gente se falava da janela e ela, a moça, achava que eu era gêmea de mim mesma. Eu ria e sustentava a história. Engraçado, a gente vai se acostumando com as coisas na cidade, como por exemplo, não conseguir ver a lua quando enche. Vamos atrofiando o nosso corpo dentro dos ângulos dos apartamentos e inflando as cabeças de tanto engolir as telas. O dia intirim…Eu não sei vocês, mas eu sou filha do mato, da terra vermelha, do espinho, do caroço da fruta, daquela rebeldia toda, cheia de presença e constância. Salve Dona Alzira que sabia desfiar o tempo como ninguém, só capinando, capinando, capinando… Sonho em algum dia voltar para um lugar onde ainda não vivi. Um lugar de brisa fresca e cheiro bom da alma do mundo me dando um abraço folhoso! 🍃

Foto: Isadora Fonseca 

Licença🌿

Essa é a entrada da casa de Dona Alzira, que foi minha vizinha por 10 anos. Sua morte, ano passado, foi estranha, fedorenta, solitária. Solitária não, seu cachorro Lorde tava lá, mordendo quem ousasse chegar perto. Desejei tanto que ela fosse enterrada ali mesmo, no terreno da sua capina diária. Eu nunca havia entrado lá, até o dia desse ensaio fotográfico, em que minha querida prima Isadora Fonseca propôs um olhar sobre meu cotidiano e topou registrar uma singela homenagem minha à vizinha. Chegando lá encontrei muitas espadas de São Jorge, como essa na entrada da casa. E esta foto me veio justo hoje, no dia de Ogum! Dona Alzira era uma velha menina negra de trancinhas, cheirava a leite de rosas, era testemunha de Jeová, dava limões aos vizinhos e pouquíssimas palavras. Chorei carregando o seu retrato. Cantei pelo encantamento de sua alma. Dancei pela proteção da sua terra.

– Dona Alzira, a senhora não acredita mas tem um cavalo enorme por baixo de um cavaleiro poderoso no meio da sua roça. As plantas são testemunhas! O mal aqui não persevera, há força, coragem e muita luz! ✨

Foto: Isadora Fonseca Photographie